sábado, 29 de maio de 2010

Justiça para si e para o outro!


“... como me libertar se os meus próprios irmãos são aqueles que me oprimem? Como me libertar se os meus próprios irmãos me colocam à margem da história? Como me libertar, se os meus irmãos, que às vezes têm instrumentos mais eficazes que eu, cruzam os braços? Como me libertar se recebi uma fé na qual se aprende apenas a dizer “sim” à minha própria miséria?” (Israel Belo de Azevedo)


Para além dos passos tímidos que os ceticismos e niilismos que me atravessam me fazem ensaiar, hoje eu gostaria de refletir de uma forma um pouco mais “afirmativa”.
Há algum tempo venho sendo provocado no sentido de desenvolver uma prática refletida em busca da justiça social. Nesse caminho, tenho levantado as seguintes questões: quais são os espaços de atuação que me cabe ocupar? Existe mesmo um espaço pré-determinado a partir da posição social a mim atribuída? Como eu, enquanto indivíduo, participo, de maneira efetiva e positiva, de uma coletividade? O que me preocupou em determinado momento foi: minha participação pode ser de alguma forma prejudicial para alguém (sendo esse alguém justamente aquele que eu queria beneficiar com a minha ação)?

Comecei a entender que não bastava participar, eu precisaria definir no que eu necessitava tomar parte e de que modo eu faria isso.

Um mergulho nos textos bíblicos

A Bíblia sempre serviu para me confrontar com algo que eu encontrava na minha realidade pessoal e social. A realidade se apresentava a mim através de uma aula sobre questão agrária, um documentário sobre violência urbana ou uma visita a um abrigo de crianças, por exemplo. Comparando a Bíblia e a realidade à minha volta, desenvolvi um apego forte a alguns textos que me ajudavam na tarefa de encontrar para mim e para os outros fundamentos para uma ação socialmente engajada. Gostaria de confrontar dois textos, duas perspectivas, que nos ajudarão a compreender melhor o tema: o protagonismo social e político.

a) Opressores e oprimidos

O primeiro dos textos se encontra no Antigo Testamento (ou Primeiro Testamento) e pertence ao livro profético de Isaías. No capítulo 58, encontramos uma interessante denúncia acerca da hipocrisia e da falsa espiritualidade. Ali, o povo reclama que, no aspecto da religiosidade, “faz tudo conforme manda a cartilha”: jejua, se mortifica e pede leis justas, mas que não recebe as recompensas desejadas. A voz de Deus (oráculo de Iahweh) mostra então que o problema está no fato de que, no mesmo dia em que jejuam, esses religiosos exploram seus próprios empregados. A prática de fé é incompatível com uma prática de vida que tenha como fruto uma situação de injustiça. O texto segue então opondo o modelo do falso jejum (falsa espiritualidade, falsa relação com Deus) a uma proposta de genuíno jejum (relação libertadora com Deus, consigo mesmo e com o próximo). O texto traz nitidamente: “Não continueis a jejuar como agora, se quereis que a vossa voz seja ouvida nas alturas!”2. A relação com Deus pede uma mudança de atitude para com o próximo. Essa mudança/arrependimento/conversão, essa nova espiritualidade, enfim, o verdadeiro jejum exigido por Deus (Iahweh), implica, segundo o texto, em “soltar as correntes da injustiça”, “desatar as cordas do jugo”, “pôr em liberdade os oprimidos”, “partilhar sua comida com o faminto”, “abrigar o pobre desamparado”, “vestir o nu que você encontrou” e “não recusar ajuda ao próximo”3. O texto fala ainda de eliminar do meio em que se vive o jugo opressor e renunciar a si mesmo em favor do próximo. O texto fala também de fartura e plenitude de vida para quem assim agir, sendo que, ao final do capítulo, trata-se da necessidade de não violar o sábado (importante elemento da religiosidade da época) e ser por isso recompensado também. O que quer dizer que, segundo esse texto de Isaías, uma espiritualidade vivida com justiça traz recompensas concretas para aqueles que a praticam. Há uma relação intrínseca entre a prática de uma fé genuína e a obtenção de algo em troca. E esse algo em troca é a própria justiça. A grande obviedade que Isaías nos faz enxergar é essa: se vocês querem justiça, então por que não a colocam em prática?
Até aqui já seria maravilhoso ficarmos com essa reflexão em Isaías. Se minha ação ou se a estrutura da qual faço parte oprimem alguém, então, que eu me adiante em deixar de agir dessa forma ou pare de incentivar e participar desse sistema opressor. O que temos aqui? Uma relação opressor-oprimido que, obviamente, precisa ser transformada, mas tal transformação não resume para nós o único modelo possível de ação. O texto fala de uma renúncia em favor do próximo. Se entendermos isso como redistribuição de renda, ótimo! Mas se nos detivermos às pequenas atitudes “bondosas e caridosas” feitas para o outro, então faltará sempre alguma coisa. Nunca seremos agentes da justiça integral se formos sempre nós em direção ao outro – pobre e necessitado –, trabalhando para o outro. Trabalhar para o outro não é o bastante, o outro também tem que trabalhar; precisa se envolver na própria mudança, tomar parte nela. O outro tem que ser o protagonista de sua própria mudança, assim como eu preciso ser o da minha.

b) Nós mesmos como protagonistas da nossa mudança

O outro texto, que muito me inspira, confronta e ensina. Não é um capítulo inteiro de um livro do Antigo Testamento. Dessa vez, apenas um versículo basta; apenas uma palavra de Jesus e já me dou por satisfeito. Dentro do Sermão do Monte (Mt 5, 6, 7), encontramos as famosas bem-aventuranças. Essas felicitações (“felizes os pobres”, “felizes os mansos” etc.), que são proferidas por Jesus Cristo, se dirigem aos seus discípulos e se estendem a toda a multidão que o ouvia. O fato é que esses discípulos são em primeiro lugar caracterizados como “pobres no espírito” (ou “de”, ou “em” espírito: versões possíveis para o texto de Mt 5.3) ou simplesmente como “pobres” (cf. Lc 6.20). Quando Jesus diz “Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”4, ele está falando com os próprios injustiçados. Aqueles que carecem da justiça, que sentem – na pele, no corpo e no espírito – fome e sede de justiça... esses serão saciados. A fome e a sede dessas pessoas terão fim um dia; ou seja, temos novamente uma promessa para aqueles que desejam de fato algo: eles alcançaram o que necessitam. Precisam de justiça e exercitam sua fé – oram e agem – para obter justiça. Têm fome e sede, mas obterão fartura. De novo o óbvio: se vocês querem justiça, busquem obtê-la de modo genuíno e terão êxito. Se querem justiça, esperem em Deus e serão satisfeitos. Essa espera, porém, é feita de ação. É como se Jesus falasse como na letra de Roberto Diamanso: “Seja corajoso e lance mão / Da porção de fé que tens / Porque é tua, peça, creia / Venha para as ruas”5. Lançar mão da fé que temos é pedir, crer e ir para as ruas!

Nas bem-aventuranças do Sermão do Monte, o que é mais interessante no movimento em direção a uma fé libertadora e a uma ação transformadora é que são os discípulos, os pobres e oprimidos, que transformarão sua própria realidade. Jesus, especificamente no versículo aqui visado (Mt 5.6), não pede que os seus discípulos abram mão de algo para que a justiça se estabeleça. Ele apenas promete fartura para aqueles que têm sentido sede e fome de justiça. Os pobres, que sofrem com a injustiça, serão os protagonistas de sua própria transformação. Se quisermos, numa leitura teológica mais de acordo com a ideia de que a missão de salvar ou transformar o ser humano em todos os seus aspectos é de Deus (“Missio Dei”)6, então podemos dizer que estes discípulos de Jesus, pobres e injustiçados, são co-protagonistas com Deus da mudança e da justiça por eles esperada. Se admitirmos, junto com a tradição cristã, que o discipulado é para todo o ser humano que resolve hoje seguir a Cristo, e não se limita apenas aos discípulos do texto de Mateus (que são também personagens bíblicos), então compreenderemos que todo ser humano é co-protagonista da missão de Deus na terra.

Protagonista ou coadjuvante?

Ao me envolver com certas práticas e pensamentos voltados para a ação social, comecei a perceber como as instituições nas quais eu atuava estavam comprometidas com um modelo de ação que sempre ia em direção aos pobres, mas que nunca trabalhava com os pobres.
Hoje, não aceito mais o paradigma do trabalho para os pobres; ao contrário, quero me envolver, na medida do possível, em ações de transformação social com eles. Leituras de Paulo Freire, seminários de desenvolvimento comunitário, envolvimento em redes sociais e participação em conferências de juventude me fizeram pensar de outra forma as várias possíveis práticas políticas e sociais que renovamos ou reiteramos a todo instante.
As tão faladas políticas públicas de juventude (PPJs) são para a juventude e são elaboradas também com a juventude. Isso mesmo: de/para/com juventude. Essas três preposições juntas formam um conceito mais fiel à ideia de protagonismo juvenil. Por isso, geralmente encontraremos num determinado evento o termo políticas públicas de/ para/com juventude. Se quisermos pensar a questão da inserção do jovem na sociedade, não podemos organizar uma política pública, um grande evento de conscientização, ou mesmo um pequeno debate sobre o tema, sem que o próprio jovem seja ator principal dessa ação. No desenvolvimento comunitário é “a mesma coisa”. Como fazer qualquer atividade para atingir uma “melhora da qualidade de vida” numa favela, sem estarmos diretamente “envolvidos com” seus moradores, os primeiros beneficiados? Politicamente falando, é muito complicado sustentar ações e práticas que não contêm a participação integral dos seus beneficiários.

A participação das “pessoas comuns” na política – tanto no tema atual das PPJs, quanto numa proposta de desenvolvimento transformador de uma comunidade etc. – é um valor do qual não podemos abrir mão se quisermos uma sociedade mais justa. Para haver justiça é preciso ouvir as vozes que clamam por justiça; na surdez coletiva, ninguém se libertará. E como diz Paulo Freire, ninguém liberta ninguém e ninguém se liberta sozinho, os seres humanos se libertam em comunhão7.

Peguemos a questão dos direitos das negras e dos negros. Sabemos que existe uma luta histórica da própria população negra em busca de liberdade, dignidade, justiça e arrependimento para aqueles que os oprimiram. Quem é e tem que ser protagonista da luta negra? As próprias negras e os próprios negros! Quer dizer que um branco não se envolverá na luta contra o racismo ou em outras discussões relacionadas? É óbvio que deve haver envolvimento, mas não na condição de protagonista. Os brancos que reconhecem na causa negra uma causa (mais que) legítima, participam da luta negra enquanto coadjuvantes8. A “mesma coisa”9 se dá na participação dos homens na luta pelos direitos das mulheres, dos moradores das grandes cidades na causa dos trabalhadores sem-terra etc.

Se o grupo ao qual eu pertenço ou represento não faz parte diretamente de determinado grupo que reivindica justiça para si, nada me impede de tomar parte em suas lutas. Só preciso lembrar até que ponto pode ir minha ação sobre a dos outros, para que – ao invés de me colocar como paternalista ou manipulador, ou seja, ao invés de me alinhar com determinada prática já existente de tipo paternalista – eu possa de fato contribuir com a libertação e a autonomia desses grupos e não com a manutenção de sua exclusão.

Quem me conhece – e sabe que sou do sexo masculino, branco, classe média, morador da urbe etc. – poderia se perguntar por que então acredito nessas lutas de terceiros a ponto de me envolver direta ou indiretamente nelas. Eu poderia simplesmente dizer que é porque todos nós compartilhamos uma mesma coletividade; ou seja, se algo vai mal para uns, isso afeta a todos. Se há injustiça para alguém, afeta todo o coletivo. Dessa forma penso na justiça para mim e na justiça para os outros ao mesmo tempo. O meu protagonismo está diretamente ligado ao dos outros. Sendo coadjuvante e co-participante de outras lutas, acabo sendo também protagonista. Sem falar que atuar sobre minha própria autonomia para gerir minha inserção em tudo isso já dá um trabalho enorme... Reconhecer-me ou não como protagonista de uma determinada causa não me faz menos responsável pela coletividade.

Fonte: http://www.emeurgencia.com/

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